Luanda – O reverendo Daniel Ntoni Nzinga afirmou, em entrevista à ANGOP, que o fim do conflito armado em Angola, formalizado a 4 de Abril de 2002, marcou apenas uma etapa que deve ser seguida com acções concretas, por toda a sociedade.     

Fonte: Angop  

Conforme o religioso, que falava dos benefícios do fim do conflito armado, no âmbito do Dia da Paz e da Reconciliação Nacional (4 de Abril), uma das grandes lições desta conquista é de que os angolanos podem viver em comunhão. 

Nesta entrevista, conduzida pelo jornalista Óscar Silva, o antigo secretário-geral do Conselho de Igrejas Cristãs em Angola (1977-1985) aponta caminhos para o aprofundamento dos pressupostos da reconciliação nacional, sublinhando que a manutenção da paz depende, acima de tudo, do respeito pela opinião contrária.  

Ntoni Nzinga faz uma incursão pela implementação dos pontos constantes no Protocolo Complementar aos Acordos de Lusaka, fala das políticas de governação, em especial do fomento à habitação, do impacto da paz nas instituições religiosas, entre outros factores. 

Para o entrevistado, é imperioso que os angolanos trabalhem afincadamente e de forma unida, a fim de construírem e deixarem um país diferente às futuras gerações. 

“A paz em Angola depende daquilo que chamamos tranquilidade, do cumprimento dos acordos, bem como do respeito à opinião contrária. O problema é pensarmos que somos melhores que os outros. Nunca poderemos viver em paz com este comportamento”. 

Siga a entrevista na íntegra: 

O senhor reverendo foi um dos participantes do processo de paz em Angola. Numa altura em que o país se prepara para assinalar 19 anos, desde o 4 de Abril de 2002, que análise faz sobre a importância desse acontecimento? 

Ntoni Zinga (NZ) – Foi um processo difícil, devido ao passado de Angola, o que obrigou a percorrer um longo caminho para se chegar ao entendimento de que os nossos problemas poderiam ser resolvidos com base em conversações entre as partes envolvidas no conflito militar. Essa foi a melhor coisa que se conseguiu. As conversações começaram em 1991, altura em que foram assinados os acordos de Bicesse (Portugal). Nesse período, poucos de nós sabíamos que havia a possibilidade de haver diálogo entre as partes beligerantes. Nessa altura, muitos angolanos começaram a falar da necessidade de um diálogo sério e lembro-me quando as organizações da sociedade civil concluíram que o conflito em Angola era algo mais que o calar das armas. Para estas organizações, o conflito era o resultado do mau entendimento ou de vontades contrárias àquilo que deveria ser o processo de paz. 

Ao contrário do que se pensava na altura, a paz foi alcançada sem a participação estrangeira directa. Que significado teve esse facto? 

NZ – Há aspectos que considero cruciais e, em primeiro lugar, há que realçar que o povo estava realmente cansado da guerra. Nunca me esqueci do entusiasmo dos angolanos por altura da independência, mas, em 2002, havia uma grande diferença. Os angolanos queriam viver em paz, não importava mais a diferença de pensamento. Quando vi as organizações da sociedade civil, as igrejas e os políticos a defenderem a necessidade de se fazer algo relevante para o país, senti que alguma coisa estava a mudar. 

 

A seu ver, que razões estiveram na base de tantos anos de conflito?

NZ – Angola tinha dois problemas fundamentais. O primeiro foi uma luta contra o colonialismo, em que nós angolanos fomos incapazes de ter uma visão comum do futuro do país, o que levou os movimentos de libertação a desentenderem-se, quando era necessária a união. Isso quer dizer que não tratamos os colonialistas como inimigos, apesar de nos termos engajado na luta contra este mal que escravizava os angolanos. 

O segundo problema, que é fundamental, é o facto de a nossa luta ter sido interpretada por aqueles cujos  interesses não eram os almejados pelos cidadãos angolanos. Tem que se ter em conta que Deolinda Rodrigues, numa das suas cartas, afirmava que “a nossa luta devia ser entendida em termos das relações entre os Estados Unidos da América com a União Soviética”. Penso que essa é uma tese que infelizmente constitui uma das causas fundamentais do conflito que destruiu Angola por muitos anos. Por isso, disse anteriormente que nós não conseguimos ter a capacidade de olharmos para nós como vítimas da opressão colonial. Esta é a razão de as potências internacionais terem analisado a nossa luta à luz dos seus próprios problemas e interesses. 

No seu entendimento, Angola foi vítima da Guerra Fria? 

NZ – É isso que estou a dizer. Mas esse facto deveu-se à nossa falha na capacidade de  unirmo-nos na luta contra o mal comum. Se olharmos para as lutas de libertação em África, além da Argélia, que teve uma luta séria, na África Austral, Angola é o único país que teve uma luta verdadeiramente séria. A nossa luta pela independência foi séria e nenhum outro país chegou a esse nível. Aliado a isso, o país lutou também pela libertação de toda parte austral do continente. O que nós sofremos depois da independência, com as agressões sul-africanas, quando o regime do Apartheid declarou a campanha de desestabilização da África Austral, não  tem comparação. 

Senhor reverendo, quais são as principais lições que se podem tirar, para o futuro, deste processo de paz em Angola? 

NZ –  As primeiras lições, como já disse, é a falta de capacidade de olharmos uns aos outros como vítimas do colonialismo. Aqui é importante olhar para a forma como interpretamos a nossa vitimização. Não desenvolvemos a capacidade de olhar ao outro como actor de um processo. Era necessário olharmos para as relações das potências  internacionais com os inimigos com quem estávamos a lutar.

Quando li um livro de um general português que dirigiu este processo, onde narra como eles desenvolveram o exército para combater o levantamento popular militar em Angola, percebi os interesses que as potências tinham em relação a este território. 

Na força aérea portuguesa, esse general era um elemento respeitado, tinha sido indicado pelo primeiro-ministro para preparar a força aérea e ele mostra como os aviões para combater os movimentos de libertação eram abastecidos na Cote d‘Ivoire. Mas era necessário que os Estados Unidos não tivessem conhecimento. 

Ora, a Cote d’Ivoire era apoiada pela França e como iam apoiar a forças aérea portuguesa que se dirigia a Angola para combater os movimentos de libertação, sendo eles nacionalistas pana-africanistas? E como é que Portugal não queria que os Estados Unidos soubessem? Com isso, quero dizer que aqueles que vinham como amigos, os seus interesses tornaram-se mais importantes que as nossas vidas. Isso aconteceu na nossa luta, sendo uma das razões que levaram ao conflito chegar ao nível a que chegou. 

 

Ao longo destes 19 anos de paz Angola teve vários progressos. Para si quais foram os mais significativos? 

NZ – Um ganho significativo é termos chegado a consciência de que podemos viver em comunhão, apesar das nossas diferenças. Numa perspectiva política, sabe que os movimentos de libertação (MPLA, FNLA e UNITA) não se olhavam como iguais.  

O ódio entre eles era superior ao que sentiam contra o colonialismo. No entanto, hoje, a perspectiva é diferente e começam a ver no adversário de ontem um irmão. Na vida política, o líder nem sempre faz o que pensa mas deve ter como interesse a vida comum e trabalhar para o bem de todos. Em minha opinião, este foi um dos ganhos do processo de paz onde a reconciliação nacional constituía uma das prioridades.   

Até que ponto os benefícios da paz contribuíram para a melhoria das condições de vida dos angolanos? 

NZ – Quando os Acordos de Bicesse (1991) foram assinados, alguém ligou-me a informar que haveria uma reunião para organizar um colóquio sobre o que estava a acontecer em Portugal. Havia gente com vontade e determinação para ultrapassar o conflito, como o falecido ministro das Relações Exteriores, Venâncio de Moura. E em 1992, podia-se notar que o angolano ao andar na rua apresentava um comportamento diferente. Quando uma pessoa está sob forte tensão comporta-se de modo diferente, se compararmos com alguém que está fora destas circunstâncias. Isso para dizer que, com o alcance da paz, era notório que o povo estava esperançado em dias melhores. 

Outro ganho tem a ver com o facto de as potências contrárias ao processo de paz em Angola mudarem a sua postura, procurando manter relações diplomáticas e económicas com o país. Os angolanos que participaram neste movimento vão se manter por muito tempo nos anais da história do país, apesar de muitos não terem apoiado o processo e se terem manifestado contrários à assinatura do acordo de Bicesse (Portugal) e do Memorando de Entendimento Complementar ao Protocolo de Lusaka (Zâmbia). 

Para nós, como país, estes poucos momentos criaram uma certa esperança e entusiasmo em relação à mudança registada. Sem guerra, Angola conseguiu traçar um plano coerente rumo ao seu desenvolvimento sustentável e multifacetado. Indo concretamente à pergunta, posso dizer que houve ganhos consideráveis na melhoria das condições de vida dos cidadãos, com realce para a livre circulação de pessoas e bens, desminagem e o início do processo de reconstrução das infra-estruturas destruídas. 

 

Tem sido uma pessoa muito interventiva e observadora do processo de paz em Angola. Sabe que o país registou um “boom” económico nos anos que se seguiram ao acordo de paz, mas vive recessão há seis anos. Como olha para isso?  

NZ – Já disse que um dos pontos que não devemos esquecer é que nem todos os que participaram do processo de paz fizeram o melhor para que houvesse uma real pacificação. A conclusão a que chegamos, nós angolanos, especialmente a nível do Comité Inter Eclesial para a Paz em Angola (COIEPA), de que tive o privilégio de fazer parte, é que  a paz  para ser paz tem de ser uma experiência comum. Quando falamos de experiência de vida comum, queremos dizer que se deve ter a contribuição de todos, independentemente das suas convicções políticas, religiosas ou de outra índole. 

No entanto, ainda temos questões sérias para resolver, quando falamos da paz,  num país onde se registam casos de intolerância política, religiosa, de corrupção, má gestão dos recursos públicos, entre outros problemas. A experiência de vida comum significa que as condições sociais e económicas entre os cidadãos que vivem na mesma sociedade não devem ser abismais, caso contrário não haverá paz. O fim do conflito armado é apenas uma etapa que deve ser seguida com passos concretos. A agenda de paz  proposta pelo COIEPA incluía a discussão com os partidos políticos que estavam na altura no Parlamento, com o secretário-geral do MPLA, na altura, e com outras forças da sociedade. Faltaram etapas. No entanto, do ponto de vista cristão, a paz é possível mas deve ter em conta os momentos críticos que surgem após o seu alcance. Em Angola, ainda não fizemos o suficiente para que as armas se calem para sempre, este é o maior problema. Estes factores contribuíram para que não se aproveitasse o boom económico, visto que nem todos os intervenientes trabalharam para o bem comum.   

Nessa óptica, o que falta fazer para que as armas se calem para sempre? 

NZ –  A decisão de se criar uma comissão de justiça e reconciliação foi tomada em 1992 e você imagina de 92 a 95 tinha que se criar as condições. Era preciso desarmar as mentes. Essa sempre foi a minha posição. Não se pode desarmar a mente de um cidadão em minutos, sendo necessário dar tempo de articular as etapas a transpor. É esse factor com o qual muitas correntes não concordam. O problema é da sociedade angolana. Precisamos saber que país queremos ter. Essa decisão não deve ser baseada em ideias de pessoas que não representam este território. 

Tornamo-nos independentes e não fomos capazes de sentar em nenhum momento para chegarmos a acordo  sobre que Angola vamos ser. Temos o dever moral de não deixar aos nossos filhos e netos Angola de hoje. Entendo ser nossa obrigação tudo fazer  para que as gerações vindouras não tenham de enfrentar os problemas que enfrentamos, com lutas entre irmãos do mesmo país.  

A paz em Angola depende daquilo que chamamos tranquilidade, do cumprimento dos acordos, bem como do respeito à opinião contrária. O problema é pensarmos que somos melhores que os outros. Nunca poderemos viver em paz com este comportamento. 

No campo da reconstrução, apenas estamos a fazer o que vemos em outros países, como condomínios, não estamos a resolver os problemas do povo, que foi obrigado a abandonar as suas áreas de origem devido ao conflito armado.

Na condição de líder religioso, quais os ganhos trazidos pela paz às igrejas angolanas? 

NZ – A entidade religiosa ganhou força, especialmente comparado com as primeiras décadas da independência. Ao tornarmo-nos independentes, a nossa política optou por uma abordagem diferente e tive a má sorte de liderar o Conselho das Igrejas Cristãs em Angola (CICA). A igreja a que pertenço, a chamada Primeira Igreja Evangélica Baptista de Angola, foi a primeira não católica que chega a Angola, mas, por razões que nunca soubemos, foi proibida, em 1961, e associada aos acontecimentos do 15 de Março, em que a FNLA foi a protagonista. Agora, quando Angola se torna independente, a religião foi declarada como ópio do povo e as missões foram transformadas em quartéis militares. 

Com o alcance da paz, houve uma maior abertura para a igreja e a mesma teve o privilégio de contribuir para o desarmamento das mentes, apesar de  continuar a afirmar que ainda falta muito por fazer. Neste contexto, a igreja tornou-se num parceiro importante do Estado, principalmente na execução de projectos sociais. 

 

Dados biográficos   

O Reverendo Ntoni Nzinga nasceu a 11 de Novembro de 1946 na aldeia de Kilumbo, município da Damba, província do Uíge. 

Ntoni Nzinga é pastor da Igreja Evangélica Baptista de Angola (IEBA), desde 1974. 

É professor titular de Teologia Contextual e Antropologia no Seminário Teológico Batista da IEBA e na Universidade Metodista de Angola, em Luanda. 

Ntoni Nzinga é Ph.D em Teologia e Estudos Religiosos (University of Leeds, Reino Unido), Bacharel em Antropologia Social (University of Manchester) e B.D. Doutor em Teologia (Institut Supérieur de Théologie de Kinshasa). 

Para além da sua formação académica, é um dos respeitados membros da sociedade civil angolana e tem sido fundamental no processo de paz e reconciliação ao longo da história do conflito angolano.

Serviu como Secretário Executivo do Comité Inter-Eclesial para a Paz em Angola (COIEPA) no período 2000-2008. 

De 2001-2004, foi representante da Quaker em Angola. 

De 1998 a 2001 trabalhou como representante de Assuntos Internacionais da Quaker na África Austral. 

Ntoni Nzinga também trabalhou como coordenador do Programa de Reconstrução da África do CMI (Genebra, 1995-197), coordenador Internacional do Programa de Monitoramento Ecuménico do CMI, na África do Sul (EMPSA, 1993-1995), secretário-geral do Conselho Angolano de Igrejas Evangélicas (1977-1985). 

 Fala  Português, Inglês, Francês, Espanhol e Kikongo. 

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